Extensão ou Comunicação - Paulo Freire


PREFÁCIO

NESTE ENSAIO, Paulo Freire, educador brasileiro de renome universal que trabalhou no Chile durante os últimos anos, analisa o problema da comunicação entre o técnico e o camponês, no processo de desenvolvimento da nova sociedade agrária que se está criando.
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O conteúdo de suas linhas é profundo, por vêzes difícil de seguir, mas quando se consegue penetrar em sua essência, revela-nos um mundo nôvo de verdades, de relações entre elas, de ordenação lógica de conceitos. Ao lê-lo nos damos conta de que as palavras, seu sentido, seu contexto, as ações dos homens, sua luta por dominar o mundo, por impor sua marca na natureza, sua cultura e sua história, formam um todo em que cada aspecto tem sua significação não apenas em si mesma, mas em função do resto.
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Mais do que uma análise do trabalho como educador, do agrônomo equívocamente chamado “extensionista", o presente ensaio nos parece uma síntese muito profunda do papel que Paulo Freire assinala à educação compreendida em sua perspectiva verdadeira, que não é outra senão a de humanizar o homem na ação consciente que êste deve fazer para transformar o mundo.
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Paulo Freire começa seu trabalho com uma análise do têrmo “extensão”, partindo de pontos de vista diferentes: sentido lingüístico da palavra, crítica a partir da teoria filosófica do conhecimento e estudo de suas relações com o conceito de “invasão cultural”. Posteriormente discute a reforma agrária e a mudança, opondo os conceitos de “extensão” e de “comunicação” como idéias profundamente antagônicas. Mostra como a ação educadora do agrônomo, como a do professor em geral, deve ser a de comunicação, se quiser chegar ao homem, não ao ser abstrato, mas ao ser concreto inserido em uma realidade histórica.
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Ao folhear suas páginas nos damos conta da pobreza e das limitações do conceito de “extensão” agrícola, que tem perdurado tanto entre nós como em muitos outros países latino-americanos, apesar da generosidade e boa vontade daqueles que consagravam sua vida a êste trabalho. Percebemos que sua falta de resultados mais profunda se devia, no melhor dos casos, a uma visão ingênua da realidade e, no caso mais comum, a um claro sentido de superioridade, de dominação com que o técnico enfrentava o camponês inserido em uma estrutura agrária tradicional.
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Paulo Freire nos mostra como o conceito de “extensão” engloba ações que transformam o camponês em “coisa”, objeto de planos de desenvolvimento que o negam como ser da trans-formação do mundo. O mesmo conceito substitui sua educação pela propaganda que vem de um mundo cultural alheio, não lhe permitindo ser mais que isso e pretendendo fazer dêle um depósito que receba mecânicamente aquilo que o homem “superior” (o técnico) acha que o camponês deve aceitar para ser “moderno”, da mesma forma que o homem “superior” é moderno.
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Paulo Freire nos diz com tôda a razão, que “conhecer não é o ato através do qual um sujeito transformado em objeto, recebe dócil e passivamente os conteúdos que outro lhe dá ou lhe impõe. O conhecimento pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sôbre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica invenção e reinvenção”.
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“...no processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquêle que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isso mesmo, reinventá-lo; aquêle que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações existenciais concretas. Pelo contrário, aquêle que é “enchido” por outros de conteúdos cuja inteligência não percebe, de conteúdos que contradizem a própria forma de estar em seu mundo, sem que seja desafiado, não aprende”.
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Além disso, assinala que a capacitação técnica não pode ser focalizada, numa perspectiva humanista e científica, a não ser dentro do contexto de uma realidade cultural total, posto que as atitudes dos camponeses com relação a fenômenos como o plantio, a colheita, a erosão, o reflorestamento, têm a ver com suas atitudes frente à natureza; com as idéias expressas em seu culto religioso; com seus valôres, etc. Como estrutura, esta totalidade cultural não pode ser afetada em nenhuma das partes sem que haja um reflexo automático nas demais.
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Donde se deduz que o agrônomo-educador não pode efetuar a mudança das atitudes dos camponeses em relação a qualquer aspecto sem conhecer sua visão do mundo e sem confrontá-la em sua totalidade. Ainda teria muito a acrescentar a êste prólogo sôbre a importância da crítica que Paulo Freire faz ao conceito de extensão como “invasão cultural”, como a atitude contrária ao diálogo que é a base de uma autêntica educação. Como o conceito de dominação, que se encontra tão freqüentemente no âmago da concepção da educação tradicional, e como esta, em vez de libertar o homem, escraviza-o, redu-lo a coisa, manipula-o, não permitindo que êle se afirme como pessoa, que atue como sujeito, que seja ator da história e se realize nesta ação fazendo-se verdadeiramente homem.
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Também é fundamental sua análise da relação entre técnica, modernização e humanismo, onde mostra como evitar o tradicionalismo do status quo sem cair no messianismo tecnológico. De onde afirma, com justa razão, que embora “todo desenvolvimento seja modernização, nem tôda modernização é desenvolvimento”. Parece-nos que a breve menção dos temas abordados é o suficiente para assinalar a grande riqueza e profundidade deste ensaio que Paulo Freire escreveu sob o título modesto de Extensão ou Comunicação. Oxalá seu texto seja amplamente lido, e seu conteúdo debatido e pensado, pois não tenho a menor dúvida de que contribuirá para nos desmistificar, para tornam-os mais conscientes da realidade em que atuamos e na mesma medida, para fazer-nos mais responsáveis e mais verdadeiramente homens.
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Jacques Chonchol
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Santiago do Chile, Abril de 1968
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