quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Declaração - II

• CAUSAS REAIS DA FOME E DESNUTRIÇÃO

A fome, a desnutrição e a exclusão de milhões de pessoas ao acesso a bens e recursos produtivos tais como a terra, as florestas, o mar, a águas, as sementes, a tecnologia e o conhecimento, não são efeitos da fatalidade, de um acidente, de um problema de geografia ou dos fenômenos climáticos. Antes são uma conseqüência de determinadas políticas econômicas, agrícolas e comerciais em escala mundial, regional e nacional que foram impostas pelos poderes dos países desenvolvidos e suas corporações, no afã de se manter e acrescentar sua hegemonia política, econômica, cultural e militar no atual processo de reestruturação econômica global.

Tendo em vista os planejamentos ideológicos neoliberais de referidas políticas:

 Afirmamos que os alimentos não são uma mercadoria a mais e que o sistema alimentar não pode ser tratado como a única lógica do mercado.

 Consideramos uma falácia o argumento de que a liberalização do comércio agrícola e o pesqueiro internacional garante o direito a alimentação das pessoas.

 A liberalização comercial não possibilita necessariamente o crescimento econômico e o bem estar da população.

 Os países desenvolvidos são capazes de produzir seus próprios alimentos e podem fazê-lo no futuro.

 A concepção promovida pelo neoliberalismo sobre as vantagens comparativas produzem graves prejuízos para os sistemas alimentares. Dentro dessa lógica, a importação de alimentos básicos tende a desmantelar a produção doméstica para comprar “mais barato” dos países ricos, induzindo a reorientação de seus recursos produtivos a agricultura de exportação “mais competitivos e de maior valor agregado” para os mercados do Primeiro Mundo. É uma mentira que os países não devem preocupar-se por estabelecer e conduzir políticas de Estado que garantam a segurança alimentar de seus cidadãos. Os neoliberais argumentam que o supermercado global dos países exportadores resolve qualquer pedido sem problema algum.

 Tratar de enganar a população quando afirmam que as agriculturas familiares e indígenas, a pesca artesanal são ineficientes e incapazes de responder as necessidades crescentes de produção de alimentos. Com esta afirmação pretendem impor uma agricultura e pesca industrial intensivas de grande escala.

 Denunciamos que quando argumentam que a população rural é excessiva em comparação com sua contribuição ao produto interno bruto, na realidade tratam é de expulsar de forma brutal a população rural de suas terras, as comunidades pesqueiras de suas costas e áreas marítimas, privatizando seus recursos naturais.

 Contestamos que a forma de fazer frente as necessidades crescentes de alimentos no mundo seja através da agricultura e a pesca em grande escala, industrial e intensiva.

 Querem nos convencer que a única função dos camponeses, pescadores e indígenas é dar lugar a privatização de suas terras e recursos naturais. Isto obriga, entre outros efeitos, a migração maciça para as cidades e países estrangeiros a fim de aumentar a oferta de mão-de-obra barata necessária a incrementar a “competitividade” dos setores dinâmicos das economias nacionais vinculados a exportação e das empresas multinacionais. O que se vê é nos países desenvolvidos aumentar o desemprego e a exclusão dos trabalhadores.

 Tentam impor o padrão alimentar das corporações multinacionais como o único viável, apropriado e correto no mundo global; trata-se de um verdadeiro imperialismo alimentar que atenta contra a diversidade das culturas alimentares dos povos, suas identidades nacionais, culturais e étnicas.

 Tudo o descrito acima tem lugar no marco da debilitação sistemática dos Estados e da promoção de falsas democracias que excluem sistematicamente o interesse público e a participação real da sociedade em geral e da população rural em particular no debate, desenho, decisão, execução e controle das políticas públicas.

• CONSEQÜÊNCIAS DAS POLÍTICAS NEOLIBERAIS

As conseqüências dessas políticas falsas e erradas estão a vista: aumentaram as vendas e a ganância dos poderes econômicos dos países desenvolvidos enquanto que os povos do Terceiro Mundo viram crescer suas dívidas externas e os setores populares aumentaram seus níveis de pobreza, miséria e exclusão. A concentração do mercado agrícola internacional em muitas empresas multinacionais se aceleraram, enquanto aumenta a dependência e insegurança alimentar da maioria dos povos.

Continuam subsidiando fortemente a agricultura e pesca de exportação enquanto muitos governos deixam totalmente desprotegidos os pequenos e médios produtores que produzem principalmente para o mercado interno.

As políticas de subsídios a produção e as exportações dos países desenvolvidos permitem que as multinacionais adquiram produtos e preços muito baixos para vende-los a preços muito mais altos aos consumidores tanto do sul como do norte.

As políticas neoliberais para o campo, na realidade impulsionaram um processo de desruralização forçada de grandes proporções e conseqüências dramáticas, uma autêntica guerra contra as agriculturas familiares e indígenas que, em alguns casos, chega a configurar um verdadeiro genocídio e etnocídio.

As comunidades de pescadores artesanais foram perdendo cada vez mais o acesso a seus próprios recursos.

Com as políticas neoliberais, a fome e a desnutrição crescem, não por ausência de alimentos, mas por ausência de direitos.

Somos testemunhas de exemplos que permitem afirmar que a erradicação da fome e desnutrição e o exercício da soberania alimentar duradoura e sustentável são possíveis. Assim mesmo, temos visto em praticamente todos os países infinidade de experiências camponesas e indígenas de produção sustentável e orgânica de alimentos e de uma gestão sustentável e diversificada dos espaços rurais.

Em razão disso, os participantes do Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar DECLARAM

1. A Soberania alimentar é a via para erradicar a fome e a desnutrição e garantir a segurança alimentar duradoura e sustentável para todos os povos. Entendemos por soberania alimentar o direito dos povos a definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito a alimentação para toda a população, com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e diversidade dos modos campeiros, pesqueiros e indígenas de produção agropecuária, de comercialização e gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental.

2. A soberania alimentar favorece a soberania econômica, política e cultural dos povos.

3. A soberania alimentar dos povos reconhece uma agricultura com camponeses, indígenas e comunidades pesqueiras, vinculadas ao território; prioritariamente orientada a satisfação das necessidades dos mercados locais, e nacionais ; uma agricultura que tenha como preocupação central o ser humano; que preserve, valorize e fomente a multifuncionalidade dos modos campeiros e indígenas de produção e gestão do território rural. Assim mesmo, a soberania alimentar supõe o reconhecimento e valorização das vantagens econômicas, sociais, ambientais e culturais para os países da agricultura em pequena escala, das agriculturas familiares, das agriculturas campeiras e indígenas.

4. Nos pronunciamos pelo reconhecimento dos direitos, autonomia e cultura dos povos indígenas de todos os países como condição essencial para combater a fome e a desnutrição e alcançar o direito a alimentação para sua população. A soberania alimentar implica no reconhecimento a multietnicidade das nações e o reconhecimento a valorização das identidades originais dos povos. Isto implica, também, o reconhecimento ao controle autônomo de seus territórios, recursos naturais, sistemas de produção e gestão do espaço rural, sementes, conhecimentos e formas de organização. Neste sentido, apoiamos as lutas de todos os povos indígenas e negros do mundo e nos pronunciamos pelo respeito irrestrito a seus direitos.

5. A soberania alimentar implica, além disso, a garantia ao acesso a uma alimentação sã e suficiente para todas as pessoas, principalmente para os setores mais vulneráveis, como obrigação irrestrita dos Estados nacionais e o exercício pleno de direitos da cidadania. O acesso a alimentação não deve ser considerada como uma compensação assistencialista dos governos ou uma caridade de entidades públicas ou privadas, nacionais ou internacionais.

6. A soberania alimentar implica em colocar em marcha os processos radicais de reforma agrária integral adaptados as condições de cada país e região, que permitam aos camponeses e indígenas – reconhecendo as mulheres a igualdade de oportunidades – um acesso equitativo aos recursos produtivos, principalmente terra, água e bosque, assim como aos meio de produção, financiamento, capacitação e fortalecimento de suas capacidades de gestão e interlocução. A Reforma Agrária, em primeiro lugar, deve ser reconhecida como uma obrigação dos Estados Nacionais onde esse processo é necessário no marco dos direitos humanos e como uma eficiente política pública de combate a pobreza. Estes processos de reforma agrária devem estar controlados pelas organizações camponesas – incluindo o mercado de arrendamentos – garantir os direitos individuais dos produtores com os coletivos sobre as terras de uso comum e articulados com políticas agrícolas e comerciais coerentes. Nos opomos às políticas e programas de mercantilização da terra promovidas pelo Banco Mundial em substituição as verdadeiras reformas agrárias e aceitas pelos governos

7. Apoiamos a proposta apresentada pelas organizações da sociedade civil, em 1996, para que os referidos Estados elaborem um Código de Conduta sobre o Direito Humano a Alimentação adequada, que sirva efetivamente como instrumento para a implementação e promoção deste direito. O direito a alimentação dos povos, incluído na declaração dos Direitos Humanos e ratificado na Cúpula Mundial de Alimentação em Roma; em 1996, pelos Estados membros da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO).

8. Propomos a ratificação mais rápída e aplicação por um maior número de países do Pacto sobre os direitos econômicos, sociais e culturais adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1966.

9. Na defesa do princípio do direito inalienável dos povos à alimentação, propomos a adoção, pelas Nações Unidas de uma Convenção Mundial de Soberania Alimentar e Bem Estar Nutricional, a qual se subordinem as decisões tomadas nos campos de comércio internacional e outros domínios.

10. O comércio alimentar internacional deve estar subordinado ao propósito supremo de servir ao ser humano. A soberania alimentar não significa autarquia, autosuficiência plena ou o desaparecimento do comércio agroalimentar e pesqueiro internacional.

11. Rechaçamos toda ingerência da OMC na alimentação, agricultura e pesca e a pretensão de determinar as políticas nacionais de alimentação. Nos opomos categoricamente a seus acordos sobre propriedade intelectual de organismos vegetais e outros seres vivos assim como sua intenção de levar a cabo uma nova rodada de negociações (a chamada Ronda do Milênio), incluindo novos temas de negociação. Fora a OMC da alimentação.

12. Propomos a criação de uma nova ordem democrática e transparente para regular o comércio internacional que inclua a criação de uma corte internacional de apelação independente da OMC e o fortalecimento da UNCTAD como espaço de negociações unilaterais em torno a um comércio alimentar justo. Da mesma forma propomos impulsionar esquemas de integração regional a partir das organizações de produtores, fora de objetivos e parâmetros neoliberais.

13. Demandamos que se cesse imediatamente as práticas desleais que estabelecem preços de mercado abaixo dos custos de produção e aplicam subvenções à produção e subsídios às exportações.

14. Nos pronunciamos contra a ALCA, que não és nada mais do que um projeto estratégico hegemônicos dos Estados Unidos para consolidar sua dominação sobre a América Latina e Caribe, ampliar suas fronteiras econômicas e assegurar um grande mercado cativo.

15. Apoiamos a reivindicação das organizações camponesas e sociais do México pela suspensão dos acordos do TLCAN nas matérias agrícolas.

16. Os recursos genéticos são o resultado de milênios de evolução e pertencem a toda a humanidade. Portanto, deve ser proibida a biopirataria e as patentes sobre seres vivos, incluindo o desenvolvimento de variedades estéries mediante processos de engenharia genética. As sementes são patrimônio da humanidade. A monopolização por algumas empresas multinacionais das tecnologias de criação de criação de organismos geneticamente modificados (OGMs) representam uma grave ameaça a soberania alimentar dos povos. Ao mesmo tempo, em virtude de que se desconhecem os efeitos dos OGMs sobre a saúde e o meio ambiente, demandamos a proibição de experiências a céu aberto, produção e comercialização até que se possa conhecer com segurança sua natureza e impactos, aplicando estritamente o princípio da precaução.

17. É necessário empreender uma profunda difusão e valorização da história agrícola e da cultura alimentar em cada país, denunciando ao mesmo tempo as imposições de padrões alimentares estranhos as culturas alimentares dos povos.

18. Manifestamos a decisão de integrar os objetivos de bem estar nutricional às políticas e programas nacionais, incluindo os sistemas produtivos locais, promovendo sua diversificação para alimentos ricos em micronutrientes; defender a qualidade e inocuidade dos alimentos consumidos pelas populações e a decisão de lutar pelo direito a informação para todas as pessoas, sobre os alimentos que consome, reforçando a regulamentação de etiquetas nos alimentos e o conteúdo da publicidade alimentar, exercendo o princípio da precaução.

19. A soberania alimentar deve basear-se em sistemas diversificados de produção, baseados em tecnologias ecologicamente sustentáveis. É necessário articular as iniciativas de produção e consumo sustentáveis de alimentos gerados nos níveis locais por pequenos produtores com o estabelecimento de políticas públicas que contribuam para a construção de sistemas alimentares sustentáveis no mundo.

20. Demandamos uma valorização justa para as comunidades camponesas, indígenas e pesqueiras pela gestão sustentável e diversificada dos espaços rurais via preços apropriados e programas de incentivos.

21. Ao abordar os problemas da alimentação no mundo há que se levar em consideração a diversidade cultural que determina diversos contextos locais e regionais porque entendemos que o cuidado com o meio ambiente e a bioversidade está em estreita relação com o reconhecimento da diversidade cultural.

22. O desenvolvimento de sistemas alimentares sustentáveis se faz necessário integrar à problemática nutricional, como exemplo a exigência pela regulamentação do manejo dos agrotóxicos.

23. Reconhecemos e valorizamos a participação fundamental das mulheres na produção, colheita, comercialização e transformação dos produtos agrícolas e a pesca e a preservação e reprodução das culturas alimentares dos povos. Respaldamos a luta das mulheres pelo acesso aos recursos produtivos, pelo seu direito a produzir e a consumir a produção local.

24. Os pescadores artesanais e suas organizações não renunciam a nossos direitos sobre o livre acesso aos recursos pesqueiros e a que se estabeleçam e protejam as zonas de reservas de uso exclusivo para a pesca artesanal. Igualmente exigimos o reconhecimento dos direitos ancestrais e históricos sobre a zona costeira e águas interiores.

25. Devem ser revistas as políticas e programas de ajudas alimentares. Não haverão de ser um fator de inibição do desenvolvimento de capacidades locais e nacionais de produção de alimentos, nem favorecer a dependência, a distorsão dos mercados locais e nacionais, a corrupção e a colocação de excedentes de alimentos nocivos para a saúde, em particular sem OGMs.

26. A soberania alimentar unicamente é possível conquistá-la, defende-la e exerce-la através do fortalecimento democrático dos Estados e da auto –organização, iniciativa e mobilização de toda a sociedade. Se requerem políticas de Estado de longo prazo, uma efetiva democratização das políticas públicas e a construção de um entorno social solidário.

27. Condenamos a política norte-americana de bloqueio a Cuba e outros povos e o uso dos alimentos como arma de pressão econômica e política contra países e movimentos populares. Essa política unilateral deve cessar imediatamente.

28. A soberania alimentar é um conceito cidadão que concerne ao conjunto da sociedade. Por essa razão o diálogo social deve ser aberto a todos os setores sociais implicados.

29. O atingimento da soberania alimentar e a erradicação da fome e desnutrição é possível em todos os países e para todas as pessoas. Manifestamos nossa decisão de continuar lutando contra a globalização neoliberal, mantendo e incrementando uma ativa mobilização social, construindo alianças estratégicas e assumindo decisões políticas firmes.

30. Acordamos fazer um chamado para desenvolver uma intensa atividade e uma ampla mobilização em torno dos seguintes eixos de luta:

• Declarar o dia 16 de outubro como o Dia Mundial pela Soberania Alimentar, até hoje chamado Dia Mundial da Alimentação.

• Exigir que se leva a cabo a Cúpula Mundial da Alimentação 5 anos depois programada de 5 a 10 de novembro do presente ano e que a FAO assuma plenamente seu mandato e responsabilidade. As organizações sociais (OSC) devem organizar eventos nos níveis nacional e continental para impulsionar suas propostas e pressionar as delegações oficiais.

• Exigir do governo italiano o respeito total a liberdade de manifestação e que se abstenha de reprimir os movimentos sociais contra a globalização neoliberal.

• Participar e mobilizar-se em torno da Reunião Ministerial da OMC a realizar-se em Qatar de 9 à 13 de novembro de 2001, o Encontro Hemisférico contra o ALCA de 13 à 16 de novembro de 2001 em Havana, e ao II Fórum Social Mundial a realizar-se em Porto Alegre de 31 de janeiro a 6 de fevereiro de 2002.

FORA A OMC DA ALIMENTAÇÃO

OUTRO MUNDO É POSSÍVEL

Realizado no Palácio de Convenções de La Habana, Cuba, em 7 de setembro de 2001.

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